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MP 739 chega com risco de sobrecarregar Justiça Previdenciária

No presente artigo pretende-se discutir os efeitos da recente legislação quanto aos benefícios concedidos judicialmente, sem adentrar na questão da constitucionalidade formal da edição da MP. Para uma contextualização adequada do campo de incidência do novo texto legal, faz-se mister, primeiro, analisar o estado da arte da jurisprudência sobre a revisão administrativa de benefícios concedidos judicialmente. Situada a temática, intenta-se encadear possíveis compreensões quanto ao regime jurídico que veio a lume com a MP 739.

1. Revisão administrativa de benefícios concedidos judicialmente: o estado da arte

O mesmo caráter rebus sic stantibus (“estando assim as coisas”) que permite ao segurado a voltar em juízo para obter o benefício negado em uma primeira ação, também autoriza o seguro social revisar eventual benefício, mesmo que concedido na via judicial, quando o segurado recuperar a sua capacidade laboral.

A primeira questão amiúde controvertida concerne à possibilidade ou não de cancelamento na via administrativa do benefício concedido judicialmente. O tema está polarizado, exigindo o STJ, ao contrário dos TRFs, a ação revisional, em razão do princípio do paralelismo das formas (AgRg. no REsp. 1.221.394/RS, rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 15/10/2013, DJe 24/10/2013).

O entendimento mais consentâneo com a natureza dos benefícios previdenciários de auxílio doença, aposentadoria por invalidez e benefício de prestação continuada, é no sentido de não ser necessária a ação judicial para o cancelamento de benefício concedido na via judicial, bastando o processo administrativo em que seja realizada a perícia para averiguação da persistência do estado de incapacidade ou vulnerabilidade. “Na relação jurídica continuativa, típica dos benefícios por incapacidade, sobrevindo modificação no estado de fato ou de direito, não ofende a coisa julgada a revisão de benefício concedido judicialmente, desde que obedecido o devido processo legal. Não é razoável que o Estado tenha que pagar por anos um benefício cujos pressupostos fáticos esmaeceram, até que uma decisão judicial transitada em julgado assim reconheça (TRF-4, Apelação Cível em MS nº 5009618-41.2015.4.04.7102/RS, 5ª Turma, unânime, Rel. Des. Fed. Paulo A. B. Vaz, j. 5/7/2016).

A jurisprudência tem reconhecido a dispensa de ação judicial revisional para o cancelamento de benefício concedido em juízo, condicionando-o apenas ao trânsito em julgado da decisão concessória (TRF-4, ApelReex 5035870-87.2015.404.7100, 5ª Turma, Relator p/ Acórdão Juiz Federal Luiz A. Bonat, juntado aos autos em 9/3/2016).

Essa jurisprudência, hoje dominante, condicionando a revisão ao trânsito em julgado, foi construída defensivamente em cima de uma patologia do sistema judicial que é a demora na tramitação dos processos. Como o processo leva em média três anos para chegar ao termo final, autorizar-se a revisão a cada seis meses geraria muita instabilidade e sucessivos pedidos de cancelamento e restabelecimento de benefícios, que somente poderiam ser decididos por nova perícia judicial. Principalmente nos casos de antecipação da tutela, em que a perícia judicial é realizada, em média, apenas seis meses depois da concessão do benefício. Antes mesmo da perícia, ter-se-ia a possibilidade de cancelamento administrativo do benefício.

Eis o dilema: condicionar ao trânsito em julgado e correr o risco de pagar o benefício indevido por longo tempo ou não condicionar e correr o risco da insegurança enquanto a decisão não transita em julgado? Convém lembrar que na Justiça Estadual Delegada é comum processos de concessão de benefício por incapacidade ou vulnerabilidade demorarem seis ou até 10 anos para que aconteça o trânsito em julgado da respectiva sentença.

Diante de uma aposentadoria por invalidez (incapacidade definitiva) ou benefício de prestação continuada concedidos por decisão interlocutória (antecipação de tutela) ou sentença, parece razoável, condicionar-se a revisão administrativa ao trânsito em julgado da decisão no segundo grau de jurisdição, e não ao trânsito em julgado depois de eventual recurso aos tribunais superiores.

O trânsito em julgado da sentença condenatória previdenciária autoriza também a imediata implantação do benefício, conforme jurisprudência do TRF-4 (QO-AC 2002.71.00.050349-7, Terceira Seção, rel. p/ acórdão des. federal Celso Kipper, DJ de 02-10-2007), devido à natureza mandamental da sentença e à ausência de efeito suspensivo de eventual recurso à superior instância, devendo fluir desde marco temporal o prazo de dois anos para o INSS, compelido à implantação, revisar o benefício administrativamente.

2. Novo regime jurídico da Medida Provisória 739/16: primeiras considerações

O artigo 1º confere nova redação ao parágrafo 4º do artigo 43 da Lei 8.213/1991: “O segurado aposentado por invalidez poderá ser convocado a qualquer momento para avaliação das condições que ensejaram o afastamento ou a aposentadoria, concedida judicial ou administrativamente, observado o disposto no art. 101”.

O artigo 101 da Lei 8.213/1991 disciplinava a obrigação do segurado se submeter a reavaliação, mas silenciava sobre os benefícios concedidos na via judicial, sendo o assunto, como referido no item anterior, amplamente controvertido jurisprudencialmente.

O parágrafo 8º do artigo 60 recebeu a seguinte redação: “Sempre que possível, o ato de concessão ou de reativação de auxílio-doença, judicial ou administrativo, deverá fixar o prazo estimado para a duração do benefício”.

Esta nova redação desafia a jurisprudência já pacificada sobre a chamada “alta programada”, que, depois de rechaçada a primeira tentativa feita por decreto, ganha espaço no texto da Lei de Benefícios. Os tribunais entendiam que a suspensão do benefício de auxílio-doença somente era possível após a realização de perícia médica administrativa atestando a cessação da incapacidade da parte autora para o trabalho.

A gramática do novo texto traz uma recomendação de fixação do termo da incapacidade e cessação do benefício dirigida ao perito administrativo e judicial nos laudos periciais, à autoridade administrativa concessora e ao juiz no processo judicial.

A não fixação do prazo pode gerar insegurança para ambas as partes, mas, via de regra, decorre ela da incerteza intrínseca à natureza da incapacidade. As patologias incapacitantes, quanto à sua evolução no tempo, podem estabilizar-se, perder intensidade e regredir ou agravar-se, como sói acontecer nos países pobres, em que os serviços de saúde pública não funcionam a contento.

Na práxis, conquanto deva ser incentivada, a tarefa de definir a priori o momento da recuperação da capacidade laboral do segurado é inglória e quiçá mesmo impossível, como vem reconhecendo a jurisprudência. “A alta programada não passa de um exercício de futurologia, haja vista cada segurado possuir um tempo específico de recuperação” (TRF-1, 1ª Turma, AMS 13.546 MT 0013546-46.2008.4.01.3600, des. federal Amilcar Machado, DJDF 19/5/2010).

Suspeito que a impossibilidade será a nota comum em um grande número de casos de incapacidade, a menos que se adotem prazos estimativos razoáveis. Todavia, a mais revolucionária mudança trazida pela Medida Provisória 739/2016 está na nova redação que deu ao parágrafo 9º : “Na ausência de fixação do prazo de que trata o § 8º, o benefício cessará após o prazo de cento e vinte dias, contado da data de concessão ou de reativação, exceto se o segurado requerer a sua prorrogação junto ao INSS, na forma do regulamento, observado o disposto no art. 62”.

Mesmo ficando ressalvada a hipótese de impossibilidade de fixação do termo final da incapacidade e do benefício, a consequência da não fixação, segundo o texto, será a consideração de um prazo estimado pelo legislador de cento e vinte dias, contados da data de concessão ou de reativação. É dizer, se o juiz não fixar o prazo para a alta, este prazo será presumido: cento e vinte dias. O segurado pode elidir a presunção requerendo a prorrogação na via administrativa. Será então submetido à perícia e, se constada a persistência da incapacidade, o benefício será prorrogado.

Seria simplista a afirmação de que a administração não poderia interferir no alcance da decisão judicial. A revisão é corolário da natureza continuativa da relação jurídica entre segurado e Previdência Social. Faz-se remissão ao que ficou assentado no item anterior quanto à exigência de ação própria e condicionamento ao trânsito em julgado da decisão concessória do benefício.

O fato cessação em 120 dias, nos casos em que não houver prazo judicialmente fixado e for indeferido o pedido de prorrogação, deverá passar por intensa judicialização. Caberá à Justiça Previdenciária dizer se a cessação foi adequada ou não. Certamente, as perícias administrativas, feitas mediante o regime de mutirão e mediante o Bônus Especial de Desempenho Institucional por Perícia Médica em Benefícios por Incapacidade, previsto na MP, tendem a ser superficiais e arbitrárias, até mais do que hoje têm sido. Os pedidos, ao que vejo, em princípio, serão deduzidos nos mesmos autos em que concedido o benefício.

Para minimizar o problema da instabilidade durante a tramitação do processo, conforme acima descrito, nos casos de antecipação de tutela, propõe-se, ao menos, contar o prazo a partir da perícia judicial, momento em que é reafirmada a incapacidade pelo perito judicial. Com isso, diante de eventual cancelamento, poderá o juiz cotejar os laudos, relativamente próximos no tempo, e posicionar-se sobre a manutenção ou não do benefício, inclusive modulando no tempo possível revisão administrativa.

Outra questão é se o novo texto legal poderia ter corrigido a jurisprudência dominante. A ratio decidendi que levou a jurisprudência a rechaçar a “alta programada” foi de ordem formal e também material.

Sustentou-se ora que a cessação do pagamento do benefício previdenciário de auxílio-doença através do simples procedimento de “alta programada” viola o artigo 62 da Lei 8.213 /91 (TRF-1, 2ª Turma, AC 200638000022384/MG, j. 09/10/2013), ora que feria o direito subjetivo do segurado, baseado na Lei de Benefícios, de ver sua capacidade laboral reconhecida por perícia médica (TRF-4, AC n. 2006.70.00.010597-5, Turma Suplementar, j. 28/02/2007, DJ 19/04/2007), ora que não se pode presumir a recuperação de capacidade laborativa, pura e simplesmente, em razão do decurso de determinado prazo (TRF-4, AC n. 2006.70.00.017889-9, 6ª Turma, j. 02/05/2007, DJ 18/05/2007).

A recuperação da capacidade laboral presumida ou por decurso de tempo é que foi ressuscitada pela MP 739/16, depois de ter sido desacolhida na jurisprudência dos tribunais. Embora seja admissível e mesmo necessário, no Estado Democrático de Direito, o instituto do “controle recíproco” entre os três poderes (freios e contrapesos), também chamado “correção legislativa da jurisprudência”, existem limites que a novel disciplina olvidou. O radical repúdio à interpretação judicial pela edição de texto legal intencionalmente contrastante com a jurisprudência poderia ter se dado se houvesse no novo texto a correção do vício que levou a jurisprudência a reconhecer a norma írrita à ordem jurídica como um todo.

Suprir a ausência de previsão legal e suprimir a previsão legal de alta somente a partir da perícia não seria suficiente, pois o problema é também de ordem lógica, sistêmica e, sobretudo, de ferimento dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, devido processo legal, contraditório e fundamentação razoável. De qualquer sorte, fatidicamente, a MP 739/16 manteve, com sutil modificação quanto à reabilitação para a “mesma atividade”, a redação do antigo artigo 62 da Lei de Benefícios de onde se extrai a exigência de constatação factual da recuperação da capacidade laboral.

Por fim, uma palavra sobre o artigo 11: “Fica revogado o parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991”. Recorde-se a redação do revogado parágrafo único: “Havendo perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser requerido”.

A partir de uma lógica meramente econômica, o novo texto legal aperta o cinto e tenta superar o que chamam de “sangria” dos cofres previdenciários, consubstanciada na concessão de benefícios por incapacidade mediante o recolhimento de apenas quatro contribuições pelo segurado que tiver perdido a qualidade de segurado quando se filiar novamente à Previdência Social para o fim de carência mínima, quando exigida (vide texto republicado em 12/7/2016).

Visualizada do enfoque atuarial e securitário, a regra pode trazer vantagens e alguma sustentabilidade, mas, do ponto de vista da proteção social, trata-se de um rematado retrocesso. A norma revogada tinha a sua racionalidade baseada na incorporação do tempo anterior à perda da condição de segurado ao patrimônio jurídico do trabalhador de longa data, que não pode ser apagado do mundo jurídico, igualando quem se filia hoje na Previdência com aqueles que contam longos anos de filiação.

Olvida também que, em tempo de acirrada crise econômica, o desemprego aumenta assustadoramente e a perda da qualidade de segurado passa a ser, mais do que uma contingência, um risco iminente de todos os trabalhadores, circunstância que torna necessário algum mecanismo legal de compensação para retomar tal qualidade, sob pena de termos, logo ali na frente, legiões de indivíduos orbitando em um limbo jurídico: nem têm capacidade laboral para trabalhar, nem detêm a qualidade de segurado que lhes garantiria um benefício previdenciário digno. Sérios candidatos aos desfalcados e limitados programas assistenciais.

3. Conclusão

Teme-se nova corrida ao Poder Judiciário, como sói ocorrer a cada onda de limitações de direitos sociais da seguridade. Cada vez mais, é nos ombros do juiz Hércules que se sustenta o Estado Social, inclinado à miniaturização. A questão é: Justiça Previdenciária encontra-se aparelhada para suportar tal nível de judiciarização?


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