Os produtores rurais e as empresas que adquirem a produção agrícola – especialmente os frigoríficos – iniciaram na Justiça uma disputa pelos bilhões de reais que foram pagos nos últimos cinco anos de contribuição ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural), declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no início do mês. Os produtores, baseados no entendimento da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), alegam que o tributo foi descontado deles, sobre a receita bruta obtida com a venda da produção. Já os frigoríficos, que conseguiram levar o assunto ao Supremo, argumentam que são os responsáveis – como substitutos tributários- pelo recolhimento da contribuição e devem receber o que foi pago indevidamente.
A PGFN estima que a derrota pode gerar um rombo de até R$ 14 bilhões nas contas da Previdência Social – R$ 11,25 bilhões vêm das contribuições recolhidas entre 2005 e 2009 e R$ 2,8 bilhões representam a perda de arrecadação apenas neste ano. No início do mês, o Supremo julgou um recurso do Frigorífico M., do Mato Grosso do Sul, e considerou inconstitucional o artigo 1º da Lei nº 8.540, de 1992, que determina o recolhimento de 2,3% da contribuição sobre a receita bruta da comercialização de produtos agropecuários. Por unanimidade, os ministros consideraram que a cobrança só poderia ser instituída por lei ordinária, e não por lei complementar. Além disso, entenderam que haveria bitributação, pois já incide PIS e Cofins sobre a comercialização agrícola.
Além de interromper a cobrança, o governo foi condenado a devolver as contribuições pagas nos últimos cinco anos. No entendimento da PGFN, no entanto, os produtores rurais poderão pleitear na Justiça apenas a diferença entre o valor recolhido nesta nova forma de cálculo e o montante que seria pago pelo modelo original. Até a edição da Lei nº 8.540, a contribuição incidia em 20% sobre a folha de salários dos produtores rurais. “O Supremo não considerou inconstitucional o tributo, mas o seu cálculo”, diz o procurador-adjunto Fabrício Da Soller. “E é possível que ainda possamos recorrer da decisão no Supremo.”
Para o procurador, as empresas não têm direito de pedir a restituição dos valores recolhidos nos últimos cinco anos, pois são apenas responsáveis por reter e repassar a contribuição à União. “Seria um pedido absurdo. Quem pagou de fato foram os produtores rurais”, afirma Da Soller. Ele argumenta que, de acordo com o Código Tributário Nacional (CTN) e a jurisprudência do Supremo e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a ação de repetição de indébito – aquela em que se pede de volta valores pagos indevidamente à Fazenda – só pode ser ajuizada pelo contribuinte. “Nesse caso, é o produtor rural. As empresas poderiam, no máximo, pleitear na Justiça o direito de não mais reter o valor do Funrural”, acrescenta o procurador.
Os frigoríficos, no entanto, não concordam com a posição da PGFN e vão brigar na Justiça pela contribuição. “O responsável pelo recolhimento é quem tem direito a recuperar o que foi pago indevidamente. Se o produtor se sentir prejudicado, deve buscar um ressarcimento do frigorífico. E na esfera civil”, diz o advogado Moacyr Pinto Junior, do escritório Pinto Guimarães Advogados Associados, que representa a Associação dos Frigoríficos de Minas Gerais, Espírito Santo e Distrito Federal (Afrig). O advogado afirma que já está preparando ações judiciais para suspender a cobrança e recuperar o que já foi recolhido.
O advogado participou recentemente, na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), em São Paulo, de uma reunião sobre o assunto, organizada pela Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), que representa cerca de 500 pequenas e médias empresas. A entidade espera uma audiência na Receita Federal para defender a extensão da decisão do Supremo para todos os frigoríficos brasileiros. Se o Fisco não concordar, a entidade promete recorrer à Justiça. “Vamos à Justiça pedir uma declaração de inconstitucionalidade para todos os frigoríficos”, afirma o presidente da Abrafrigo, Péricles Pessoa Salazar, acrescentando que as ações de repetição de indébito devem ser ajuizadas por cada empresa.
Já a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), que representa os 11 maiores frigoríficos do setor no país, aguarda a publicação do acórdão do Supremo para orientar suas filiadas. “Acredito que o Supremo deverá se manifestar em relação a quem tem o direito de pedir a restituição”, afirma Otávio Cançado, diretor-executivo da Abiec.
Mesmo sem a publicação do acórdão do Supremo, os produtores rurais já buscam a Justiça para recuperar a contribuição. O advogado gaúcho Ricardo Alfonsin deve ajuizar nos próximos dias cerca de uma centena de ações individuais e ações coletivas para a Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz) e a Associação dos Criadores de Suínos do Rio Grande do Sul (Acsurs). O advogado Marcelo Guaritá, sócio do escritório Diamantino Advogados Associados, também está ingressando com diversas ações judiciais em nome de produtores rurais e de entidades de classe. Para ele, a estratégia jurídica deve variar em cada caso. O advogado explica que quando a empresa já possui uma discussão judicial em andamento com a Fazenda – como é o caso de muitos frigoríficos -, a estratégia é tentar ingressar na ação como parte interessada. Já para aqueles produtores que comercializam com empresas que não discutem o tributo em juízo, a ideia é ajuizar um processo diretamente contra o governo.
O advogado Allan Moraes, do escritório Neumann, Salusse, Marangoni Advogados, que representa diversas empresas e cooperativas agrícolas, acredita, no entanto, ser possível às empresas ajuizar ações de comum acordo com os produtores rurais. “Os produtores têm dificuldades para comprovar o pagamento do Funrural. Nem sempre o recolhimento está discriminado nas notas fiscais”, diz Moraes. O advogado lembra ainda que os produtores, principalmente os de menor porte, normalmente não têm ciência da contribuição quando vendem seus produtos, e há também a questão de dependência econômica para com as empresas, o que pode ser outra barreira para ingressarem com ações judiciais.
Governo pode instituir cobrança por nova lei
Apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter julgado inconstitucional o Funrural, a cobrança pode voltar a ser instituída. Uma das possibilidades mais cogitadas por advogados tributaristas é que a Fazenda volte a cobrar o tributo por meio de lei complementar. O mesmo ocorreu com o Fundo para Investimento Social (Finsocial), cuja cobrança foi julgada também inconstitucional há 19 anos e substituída pela Cofins. Da mesma forma que ocorreu com o Finsocial, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) ressalta que a contribuição para a Previdência não pode deixar de ocorrer na área rural. Por enquanto, a possibilidade é apenas uma especulação.
O Finsocial foi criado em 1982 a partir da cobrança de 0,5% sobre o faturamento bruto das empresas e foi majorado diversas vezes. Em 1991, porém, a Lei Complementar nº 70 criou a Cofins – que manteve a tributação sobre faturamento.
No caso do Funrural, o caminho está ainda mais fácil. Isto porque a norma derrubada pelo Supremo, a Lei nº 8.540, de 1992 – que estipulou a contribuição sobre a produção – é anterior à Emenda Constitucional nº 20, de 1998, que modificou o sistema de previdência social. A emenda passou a admitir a receita como base de cálculo. Ou seja, uma nova lei nos moldes da que foi considerada inconstitucional estaria fundamentada, agora, na Constituição Federal. “Seria um caminho fácil aprovar uma nova lei no Congresso, mas a Fazenda teria de responder pela cobrança feita de forma inconstitucional no passado
” , diz o advogado Marcelo Guaritá, sócio do Diamantino Advogados Associados.
A decisão do Supremo pela inconstitucionalidade do Funrural vale apenas para a empresa M. Para obter o mesmo direito, os interessados devem propor suas próprias ações judiciais – o que ainda não é garantia de sucesso imediato, pois a decisão do STF não é vinculante. Um caminho mais curto seria o Supremo oficiar ao Senado Federal para editar uma resolução que pusesse um fim à eficácia da lei.
Arthur Rosa e Luiza de Carvalho, de São Paulo e Brasília
VALOR ECONÔMICO – LEGISLAÇÃO & TRIBUTOS