A jurisprudência foi mais além e expandiu os direitos ali previstos, e muitos defendem, com base no princípio do não retrocesso dos direitos sociais, que nenhuma lei pode alterar aquilo que já foi reconhecido como hipóteses de benefício, pois isso afrontaria a Constituição Federal de 1988 (arts. 194 a 203).
Ocorre que a abertura sem controle dos sistemas de Seguridade Social leva a seu colapso. A experiência de outros países, inclusive Portugal, terra do professor J.J. Gomes Canotilho, citado por nove de cada dez autores brasileiros que defendem o princípio do não retrocesso, demonstra que aberturas excessivas são seguidas por drásticas diminuições dessas hipóteses, que acabam se mostrando necessárias para a sobrevivência desses sistemas.
As nações, como as pessoas, definem-se por suas experiências. No caso do Brasil, o reencontro com a democracia e o encontro – pois inédito na maior medida – com a cidadania fez com que sentíssemos a atual Constituição como uma passagem abrupta para um tempo diametralmente oposto ao que vivêramos, sobretudo nas duas décadas que antecederam a redemocratização.
O Judiciário se debruçará sobre essas questões em breve e a tendência é que o entendimento demore a se uniformizar
Esse clima emocional em torno da Constituição de 1988 levou a um impasse no pensamento jurídico nacional. De um lado, temos a Constituição, que muito prometeu e que tantos querem aplicar na literalidade e de imediato. De outro lado, existe a lei, que impõe os limites do possível a essa concretização da Constituição, tarefa que só pode ser realizada de maneira gradativa.
Há muitos anos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e a maioria dos doutrinadores nacionais têm adotado o caminho da implantação imediata da Constituição. Já os integrantes do segundo grupo, chamados pejorativamente de legalistas, são acusados de um erro elementar de lógica jurídica, pois estariam empunhando um instrumento normativo menor – a lei – frente à Constituição, que é o ápice do ordenamento jurídico.
Mas essa oposição entre lei e Constituição é, em grande parte, imaginária. Se só existisse a Constituição, não haveria um instrumento que colocasse em prática o que ela estabelece para a geração de agora e para as futuras. Esse instrumento é a lei que, por ser mais próxima da realidade cotidiana, tem a indigesta missão de impor limites práticos aos termos generosos da Constituição. Por outro lado, sem a Constituição, a lei não teria um rumo a trilhar. Não teria um norte.
A constituição e a lei, menos que realidades hierarquicamente dispostas, são complementares. A lei não pode prescindir de algo que lhe determine o caminho a trilhar. Já a Constituição, que dialoga com o Brasil de hoje e o que existirá daqui a décadas, não pode se imiscuir na realidade efêmera. Portanto, a lei não é um empecilho à Constituição, e não é de todo verdadeira a concepção de que uma ocupa um patamar tão superior ao da outra. A diferença entre as duas, menos que hierárquica, é dimensional, como a caminhada e o caminho.
No dia 31 de dezembro de 2014, último dia do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, foi publicada a Medida Provisória nº 664 que alterou substancialmente a Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei nº 8.21391). Houve mudanças na aposentadoria por invalidez, no auxílio-acidente e na forma de cálculo do auxílio-doença. Principalmente, houve mudanças na pensão por morte. Foi instituído um período de carência, de 24 meses, que não existia. Além disso, foram reduzidos o valor mensal a ser recebido pelos dependentes e o tempo pelo qual receberão o benefício.
Muito ainda se discutirá sobre a validade da Medida Provisória nº 664, bem como de outra Medida Provisória, de nº 665, que trouxe mudanças ao abono salarial e ao seguro desemprego. Primeiramente, com base no art. 62 da Constituição, será discutido se o governo poderia ter tratado desses temas, na extensão que o fez, por medida provisória. Em segundo lugar, será necessário avaliar se essas mudanças não destoam substancialmente dos arts. 194 a 204 da Constituição, que tratam da Seguridade Social. Também haverá debates sobre a adequação dessas mudanças ao Pacto de São Salvador, tratado internacional sobre direitos sociais e econômicos que o Brasil ratificou em 1996, e que ingressou em nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto nº 3.321, 1999. Por fim, será travada a longa e difícil discussão sobre o quanto essas mudanças se harmonizam com a legislação que permanece vigente sobre seguridade social, e se haverá necessidade de se criarem regras de transição.
O Judiciário se debruçará sobre essas questões em breve e a tendência é que o entendimento sobre elas demore a se uniformizar. De qualquer modo, para que ao final se chegue a um resultado construtivo e realista, é importante que o debate, no Judiciário e na sociedade, não parta do velho paradigma que antepõe lei e constituição. Há de se ter em mente que elas não se antagonizam. Ao contrário, uma precisa da outra.
(*) Hugo Otávio Tavares Vilela é juiz federal e professor colaborador da Escola Superior da Magistratura Federal da 1ª Região.