Somos um caso raro de país onde se pode acumular aposentadoria com o salário na atividade. Houve recentemente aprovação pelo Senado da isenção da contribuição de aposentados que continuam no mercado de trabalho.
Além da motivação para essa proposta em função do ciclo eleitoral, há fundamentação de natureza lógica para o fim das contribuições. Entretanto, a força dos argumentos para sua manutenção em muito supera o da sua extinção.
A única razão para o término das contribuições seria interpretá-las como de natureza retributiva. Como o aposentado não gerará novo benefício previdenciário em decorrência do atual trabalho que exerce, não se deveria tributá-lo dado a inexistência de eventual benefício futuro decorrente dessa contribuição.
Ocorre, entretanto, que na história recente tributária e da previdência social do Brasil, as contribuições marcam-se por seu caráter tanto solidário quanto retributivo. Há dois exemplos marcantes dessa característica solidária na nossa previdência social. As aposentadorias e pensões concedidas aos trabalhadores rurais são, em sua grande parte, não-contributivas.
Basta se comprovar exercício de atividade rural, mesmo sem contribuição prévia, para se ter direito a esses benefícios. Caso se considerasse a contribuição como puramente retributiva não faria sentido a existência da previdência rural, dado que se concedem várias aposentadorias e pensões rurais sem qualquer contribuição passada.
De modo alternativo, os empregadores de todos aqueles que recebem acima do teto do INSS, hoje em R$ 3.416,54, recolhem 20% sobre o salário integral desses trabalhadores. Há pagamento de contribuições sobre uma base que não se reverte em benefícios futuros.
Se fosse exclusivamente retributiva, a contribuição patronal deveria se limitar ao teto do INSS. Ademais, fora do campo previdenciário, todos pagavam a extinta CPMF, criada com o intuito de financiar a saúde pública, mesmo quem somente utilizou serviços médicos particulares.
O argumento do caráter meramente retributivo da contribuição não encontra respaldo na realidade prática brasileira, na qual as contribuições se caracterizam também por seu perfil solidário.
A comparação das condições de acesso à aposentadoria no Brasil em relação a outros países também justifica a manutenção da contribuição de aposentados. Em primeiro lugar, as idades de aposentadoria no Brasil são extremante baixas.
No ano de 2009, a idade média de aposentadoria por tempo de contribuição foi de 54 anos para homens e 51 para mulher. É comum os demais países imporem idade mínima de aposentadoria na faixa dos 65 anos.
Aqui a idade média fica na faixa dos 50 anos. Em outras palavras, a aposentadoria deixa de ser um seguro decorrente da perda de capacidade de trabalho em idade avançada e passa a ser uma complementação de renda a quem ainda se encontra com boa capacidade de trabalho.
Em segundo lugar, também somos um caso raro de país onde se pode acumular aposentadoria com o salário na atividade. Nos outros países, é usual se optar por um dos dois, ou aposentadoria ou salário em atividade.
Essas duas características da nossa previdência social, baixa idade de aposentadoria e possibilidade de acumular aposentadoria com salário em atividade, justificam também a manutenção da contribuição dos aposentados que retornam ou continuam no mercado de trabalho. Nossa generosidade previdenciária implica ônus tributário maior que também deve ser compartilhado por quem já recebe benefícios do sistema.
O impacto fiscal dessa isenção nada tem de desprezível. Cálculos do ex-ministro da previdência, José Cechin, apontam para perda de arrecadação na casa de R$ 14 bilhões por ano.
Por mais conservador seja esse cenário, dificilmente estimativas mais otimistas indicarão redução de receita anual inferior a alguns bilhões de reais. Dado que o gasto previdenciário já consome 12% do PIB, desdenhar essa arrecadação não parece ser salutar.
Como nossa previdência já apresenta há longa data déficits expressivos, alguém terá que pagar pela perda desses bilhões de reais. O governo deixará de tributar esses aposentados e deverá encontrar fontes de receita em outro grupo.
A despesa continua no mesmo patamar e alguém pagará os tributos para financiá-la. Não se trata efetivamente de redução de carga tributária, necessária ao crescimento do país, mas simplesmente redistribuição do ônus tributário entre distintos grupos. Provavelmente com aumentos de outros tributos que tornarão nossa carga tributária ainda mais regressiva.
O cenário provável é que a redução das contribuições para esse grupo que apresenta ao menos duas fontes de renda venha a se compensar por aumento de impostos indiretos que recaem sobre o consumo e, por consequência, sobre pessoas de menor renda. Nesse cenário, a consequência da isenção seria tornar a carga tributária ainda mais regressiva, mas não reduzi-la.
Caso o governo não logre compensar essa perda de receita mediante a elevação de outras fontes de tributação, adicionam-se outras consequências também nefastas. Aumento da dívida pública e do déficit do governo, fatores que inibem o crescimento e o investimento, tão necessários para sobrevivência do nosso sistema previdenciário, em especial, para um país que passa por acelerado processo de envelhecimento populacional.
Fonte: Valor Econômico, por Marcelo Abi-Ramia Caetano, 22.04.2010